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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Ele ou Ela?

Hoje comecei o meu dia como o de costume: acordar cedo, me preparar para sair e ir trabalhar, enfrentar o imenso desconforto que é estar na presença de outros seres humanos enquanto utilizo o metrô ou caminho na rua. Tudo estava bem normal mesmo. Mas hoje foi um dia em que acordei com uma sombra negra pairando sobre mim. Não porque algum acontecimento do dia anterior tivesse provocado isso ou algo assim. Era apenas... um dia ruim. Um dia sem confiança própria. Dos mesmos medos, das mesmas dúvidas, das mesmas angústias. Da mesma raiva de saber que continuo podendo sentir essas coisas, que não as superei completamente.

Mas esse novo desabafo não é para contar sobre o meu dia. Porque ele foi o início, mas transcorreu sem nenhum problema particularmente importante e eu ainda consegui me sentir bem ao longo dele. Só que, no caminho de casa, me vieram pensamentos íntimos e dos quais eu sempre tive muita vergonha de falar a respeito com qualquer um. E, com eles, questionamentos, possíveis respostas e mais perguntas.

Desde criança eu soube que não era e nem queria ser como os outros meninos. E eu nem queria ser menino. Pra quê? Homens, com sua força, sua liberdade, suas atitudes quase que automaticamente justificadas por serem o que são. Homens, destinados à liderança da família, a serem capazes de puxar brigas para defender a própria honra, a falar grosso e se impor. Homens, sentando de pernas abertas, tirando suas camisas, exercendo todo o seu direito à masculinidade inerente. Tudo isso sempre me foi absurdamente estranho, quase como se eu fosse um extraterrestre. Porque, obviamente, eu também não era mulher.

Fui criado em um ambiente e em uma época em que o pensamento "binário" imperava com uma firmeza muito maior. Havia: bem e mal; branco e preto; certo e errado; homem e mulher. Eu não fui ensinado a realmente questionar as áreas "cinzas" desses extremos, a ver que uma coisa tinha muito da outra dentro de si e isso era apenas natural. Então esse pensamento dualista se enraizou dentro de mim profundamente e gera frutos até hoje.

Daí me veio o primeiro choque: nasci homem, mas não queria ser homem. Queria ter nascido mulher. Porém não havia nascido mulher, então para mim não seria possível ter o carinho e o cuidado que as mulheres ao meu redor pareciam receber. Não teria a vantagem de fazer parte do grupo das meninas populares da escola junto com minhas primas, trocar segredos, estudar juntas, conquistar os garotos. Não poderia ser parte desse universo, dessa realidade. E jamais encontraria o amor, porque eu ainda não sabia que dois homens também podem ter um relacionamento. Era como viver mergulhado num misto constante de humilhação, inveja e frustração. Por não ser nem como elas e nem querer ser como eles. Por me sentir não sendo ninguém exatamente, apenas um engano, um erro. E por nem sequer imaginar que haveria uma forma de poder ser "eu".

É claro que eu estava completamente alienado em relação às dificuldades e imensas injustiças com as quais as mulheres em geral precisam lidar ao longo da vida, dado o nosso histórico patriarcal e criminoso com elas. E, ainda assim, hoje fui tomado por esse sentimento novamente: queria ter nascido mulher. "Por que?", me pergunto eu. Por que ser mulher?

Seria uma fuga? O que seria, de fato, melhor?

Sempre admirei e invejei as mulheres. Sempre gostei e acho que gostarei das personagens femininas, sejam de jogos, filmes, livros, não importa. Busquei me aproximar e me identificar com elas antes de qualquer coisa. Porque elas eram tão legais! Corajosas, lutadoras, heroínas, independentes e, ainda assim, mulheres. E tinham também a atenção e o desejo dos homens. Eram a epítome da perfeição na minha visão infantil. Então era mais ou menos assim que eu via o fato de ser "mulher". Toda mulher sempre foi superior a mim por ter nascido da forma correta e, assim, poder exercer essa existência com suas particularidades de gênero.

Ser homem... sempre me meu muito medo. Porque eu via os homens ao meu redor sendo ensinados a se comportar como homens: com sua brutalidade, virilidade, evitando a delicadeza. "Não sente desse jeito, não faça isso, não é coisa de homem". Perdi a conta da quantidade de coisas que ouvi durante toda a minha vida e que secretamente alimentaram uma sensação de contínua inadequação dentro de mim. Nunca quis me portar estritamente como o padrão masculino manda, não me dava prazer algum. Quis me distanciar disso o quanto pude e com toda a pouca coragem que conseguia reunir. Sempre fui feminino, minha voz não engrossou tanto como as dos rapazes normalmente engrossam, passei uma imensa parcela da vida me recusando terminantemente a ficar sem camisa e mais uma série de outros comportamentos peculiares. Sentar de pernas abertas? Não, não mesmo.

E, como que por uma ironia da vida, minha barba não demorou a crescer. E depois veio uma verdadeira enxurrada de pelos por todo o corpo. E aí cresci, cresci muito e fiquei com pés enormes. A testosterona parecia trabalhar a todo vapor, independente da minha vontade. Cada uma dessas coisas era um motivo de vergonha para mim. Era como me afastar mais e mais do meu ideal, das minhas heroínas, da menina que vivia dentro de mim. Da minha própria alma.

Acho que é aí que entra o papel da dicotomia na minha criação: como não tinha ouvido algo como "está tudo bem em você ser como é, você tem o direito de ser feliz e de realizar os seus sonhos, inclusive o de amar e ser amado", creio que posso ter assumido dentro de mim a identidade de gênero que se encaixava com o meu desejo por pessoas do mesmo sexo, quase como sendo uma forma de compensação. Me via como menina. Em silêncio, em segredo, minha maior vergonha e meu maior tesouro. Olhava para os meninos e tinha muito prazer em reconhecer as diferenças entre nós, isso me deixava intimamente seguro e reafirmado de certa forma, mesmo com todo sofrimento e bullying que isso me gerou ao longo da vida.

Mas é como levar uma vida inteira na periferia de si mesmo, incapaz de se voltar para dentro e descobrir o que te faz forte, o que dá medo, o que se quer fazer da vida. É como estar sempre no limiar entre o "quero que as pessoas saibam e me respeitem como sou" e o "ninguém jamais pode saber disso, porque é errado". É estar paralisado e deixar a vida correr ao seu redor, como uma pedra que não se move com o correr das águas.

Hoje, tenho um relacionamento com um homem e não precisei mudar de sexo para isso. Um homem que conhece esse segredo e me amou ainda assim. Hoje aprendi a ler melhor as "áreas cinzas". E descobri que, se ainda quero ser mulher, é porque já sou uma mulher. Sou uma mulher dentro do corpo de um homem, com todos os seus traços característicos. Meu sexo físico muitas vezes pesa sobre mim como uma pedra, por vir imbuído de toda uma carga do que é esperado socialmente que eu faça - ter mais força, carregar mais pesos, passar mais segurança às pessoas, etc. Quando, na verdade, eu só quero fluir. Quero ser eu e me orgulhar disso.

Queria poder gritar essa verdade para os quatro ventos. Queria que as pessoas enxergassem essa minha realidade e a respeitassem para que eu me sentisse seguro para ser quem eu sou. E queria não sentir que preciso do aval de outras pessoas para exercer minha existência, mesmo as desconhecidas. Queria não ficar analisando doentiamente todo e qualquer outro ser humano para saber o quão diferentes somos em questões de gênero. Queria me sentir tão confortável quanto um homem ou uma mulher que cabem dentro da própria pele e não precisam passar por esses questionamentos. Uma pessoa CIS.

Porque não sou CIS. Não sou uma metade da laranja, nem descendente de Adão. Sou uma mistura, numa loucura de gritos e cores sem fim.

Sou mulher, mesmo sendo homem. Prefiro ser mulher, mas hoje aceito ser homem. Sou tanto ele quanto ela. E onde eu puder exercer essa minha existência em completude, assim o farei.

Que eu tenha coragem.