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segunda-feira, 23 de julho de 2012

O Choque Divino


Venho escrever para mim mesmo e já me deparo duas sérias características que tendem a me fazer querer jogar tudo para cima: a ansiedade e a indecisão. A primeira me ataca com um milhão de ideias legais que provavelmente tentarei escrever aqui, só que com a vontade de cuspí-las todas ao mesmo tempo; a segunda vai ainda além, ao ponto de me congelar completamente com a dúvida "como devo começar isso?".

Sendo um ser perfeccionista, visualizo previamente toda a grandeza potencial no que decido fazer e espero criar algo que esteja plenamente de acordo com ela, nada menos. O problema das coisas perfeitas, porém, além de sua virtual inexistência, está no fato de já serem concebidas prontas, suficientes. Se é assim, como raios vou começar uma coisa, trabalhar nela até eliminar todos seus buracos de imperfeições e deixá-la perfeita? Entender que esse caminho simplesmente não existe é um dos meus maiores desafios, porque essa mesma dúvida funciona como uma pedra gigante repousada logo no início de qualquer estrada que resolvo tomar para realizar alguma coisa.

Tenho medo de começar novos jogos, veja só. Minha constante preocupação em absorver toda e cada informação que eles me passam muitas vezes transformou momentos que deveriam ser bons em fadiga extrema e desatenção. Quero terminá-los com uma medalha de ouro, e os mais marcantes e divertidos são aqueles em que resolvo simplesmente deixar isso de lado para aproveitá-los como puder, sem exigências. Falo disso porque esse é um comportamento obsessivo que repito em todos os aspectos de minha vida. E não falo de lutar com unhas e dentes para fazer algo perfeito, o que talvez viesse a ser até uma atitude louvável. Falo de me assustar com a realidade de que jamais serei capaz de realizar algo assim e deixar essa verdade exercer tamanho poder sobre mim que desisto antes de começar. Ou pouco depois de ter dado os primeiros passos, como aconteceu com uma terrível quantidade de projetos criativos que deixei órfãos. Isso é um porre.

Acredito que ter crescido acostumado ao pensamento constante de que deveria ser uma pessoa perfeita para ser aceito tem bastante a ver com tudo isso. Mas o engraçado é que, ao meu ver infantil, ser perfeito era possuir a capacidade mágica de sempre agradar as pessoas, ser gentil, razoavelmente inteligente para ser respeitado por elas e jamais, jamais incomodá-las. Dessa forma eu nunca seria rejeitado, não haveria qualquer razão plausível para isso (mas aconteceu uma milhão de vezes, obviamente). Meu ponto é que nada disso foi algum dia sobre eu "realizar" nada, então pouco me questionei sobre meus sonhos ou como pretendia lutar por eles. Fui aprender que o poder e o dever para isso pertenciam unicamente a mim mesmo muito tempo depois.

Então, nessa noite de reflexão e pouco sono, em que começo escrevendo livremente e acabo deixando de lado todos os pensamentos legais anteriores para discutir uma coisa totalmente nova, me pego desejando ser diferente. Há coisas que aprendi e que fui esquecendo por não praticá-las - e que me fazem uma falta danada, percebo agora. Mais uma vez a indecisão me segura, pergunta aos meus ouvidos se não irei estragar o texto ao continuar escrevendo-o, ou deixá-lo demasiado triste, ou longo, ou num tom de auto piedade muito grande. Não estou nem aí, ao menos desse penhasco criativo eu sinto ter o direito de me jogar nesse momento. E não parar até chegar ao chão.

O que tem me feito falta nesses últimos dias são as minhas sessões de terapia. Não só porque elas me ajudaram um bocado, me fizeram me reinventar, ou melhor, me conhecer de verdade. É mais pelo fato de aquele psicólogo ser inteligente demais! E não aquele tipo chato de inteligência, que jorra sobre você como uma cachoeira incessante e cheia de informações que nem sempre lhe interessam. Não isso, mas uma inteligência sagaz, simples, segura de si, cheia de significados e com poucas palavras. Uma pergunta dele era o suficiente para me desarmar completamente e me fazer questionar coisas que nem sabia que existia. Ele ensinou tanta coisa legal, como o fato de haver em nós uma presença superior e inexplicável, quem somos de verdade, uma divindade infinita em nossa finitude.

Sei bem como isso pode soar, então me deixe explicar melhor: todos nós temos algo chamado "Ego" e a sua função é nos manter constantemente sob controle, moldar nossos desejos e sentimentos para que se encaixem em cada situação que enfrentamos. Ele é a máscara que utilizamos em nossa vida, pela qual tentamos convergir características que serão entendidas pelos outros como sendo "nós". O problema do Ego é que ele tem fortes tendências megalomaníacas e às vezes passa a acreditar que ele é, de fato, quem somos e nos fazem pensar a mesma coisa. Dessa forma, aquela pessoa que conseguimos construir, com tais defeitos, tais qualidades e tais objetivos para enfrentarmos o dia-a-dia, passa a dar as ordens.

Só que o Ego é frágil e costuma se despedaçar completamente ao ser colocado frente a uma situação incômoda e improvável. Quem nunca desejou morrer ou sumir por em algum momento não ter tido a força necessária para dar uma boa resposta merecida? Ou mudar o rumo da sua vida? Ou por não ter tentado viver aquele amor que tanto desejava? O Ego está imbuído de características fixas, forjado em dureza, portanto não pode ser flexível e se adaptar para nos ajudar a resolver todo tipo de problema. Ele não pode aplicar a coragem que acreditamos possuir para lidar com certos assuntos em toda e qualquer situação. E digo isso porque é em nossas fraquezas e medos que o Ego se desfaz. E o que sobra disso? O desespero. "Por que eu não consigo? O que há de errado comigo?", dentre outros pensamentos venenosos.

E onde entra a divindade que somos nisso tudo? Esse é um conceito que vem do hinduísmo, se não me engano, e é algo com que me identifiquei bastante.

Pausa para uma nova indecisão. Engraçado, parece que toda vez em que a cito é como se a olhasse como um pai olha para seu filho ao pegá-lo fazendo algo que não devia. E então ela se encolhe, oprimida pela minha reprovação. Menina má. Prosseguindo...

A "divindade" que habita em nós seria quem realmente somos em toda nossa essência: esse imenso oceano de sentimentos controversos e coexistentes, desejos e possibilidades infinitas. E ao entrarmos em contato com o mundo, numa certa ocasião, numa certa sociedade, com suas certas regras e que exija de nós um certo posicionamento, fazemos as águas desse oceano escoarem através de um complexo funil, que lhes dá a forma de "ação", nossa ação (ou reação).

Compreender que somos esse poço infinito em constante mudança nos ensina a sermos mais pacientes com nossos defeitos e remorsos, porque sabemos que por pior que as coisas possam estar, ainda somos nós mesmos, únicos e insubstituíveis, capazes de experienciar e interpretar o que ninguém mais pode. É como o ponto máximo da nossa honestidade com nós mesmos. E ao aceitarmos essa verdade, nos tornamos flexíveis e resistentes às constantes mortes pelas quais o Ego tem que passar. Porque é assim que as coisas são, ele surge apenas como faces que utilizamos em cada situação para interagirmos com o mundo nos sentindo bem naquele contexto. Então é plenamente normal que se desfaçam continuamente, pois nunca serão suficientes para lidarmos com tudo que nos acontece e nem podem evitar os problemas. Afinal eles são apenas pequenas partes de nós e a sua morte não nos torna menos presentes e reais, pois somos muito mais profundos e verdadeiros do que eles. E assim como acontece dentro de nós, devemos aceitar também o mundo que nos cerca, com todas as suas imperfeições e sofrimentos que simplesmente não podemos evitar.

Não acho que seja necessário nos ver exatamente como "divindades", claro, basta apenas entender que não há necessidade de sermos outra existência e nem viver com o medo constante da mudança e do sofrimento. O que me faz gostar mais dessa teoria, porém, são aqueles momentos em que sinto que estou sendo completamente eu mesmo. Não falo do fato de me sentir plenamente confortável em minha própria pele, o que também é maravilhoso e nem sempre possível. Mas alguém já sentiu aquela sensação engraçada como um arrepio, uma onda de choque poderosa e indescritível quando estamos "realizando" alguma coisa? Comigo aconteceu algumas vezes, uma quando dava um conselho realmente bom, outras enquanto compunha músicas que me escancaravam emocionalmente, outras cantando em sintonia perfeita com meus sentimentos, outras desenhando... Não foram tantas assim. Mas é um momento único em que você tem a sensação de que está fazendo exatamente o que deveria fazer, o que gosta de fazer e isso te deixa feliz. É como se houvesse uma inteligência muito superior agindo através de você naquele instante e que te faz perguntar depois “nossa, eu fiz isso mesmo?”. Não sei se consegui ser claro nessa descrição, mas é por ser realmente difícil de colocar em palavras. Só que, para mim, isso é um contato inegável com o meu verdadeiro eu, aquele eu que esse mundo vive tentando e consegue soterrar todos os dias. Talvez seja um momento do mais puro êxtase, ausência total de medo ou insegurança.

Infelizmente, esses raros choques divinos duram segundos apenas e logo volto ao mundo cheio de defeitos. Contudo, a sensação de realização não pode ser negada e foi justamente ela que me peguei desejando outro dia. Pensei "queria fazer alguma coisa de que realmente orgulhasse, que me fizesse me sentir útil e realizado". Talvez dessa forma pudesse estar cada vez mais próximo da minha "divindade" interior e, cada vez mais, trazê-la para minha vida de maneira consciente e verdadeira, livre do controle que o medo me faz querer exercer sobre tudo a meu redor. Assim, eu poderia não abrir mão da minha costumeira melancolia, mas aceitá-la como parte essencial de minha existência incompleta e vivê-la sabendo que serei feliz depois dela, porque quero ser feliz. Aceitar as dificuldades me dá o poder de contorná-las; aceitar meus medos, motivos para enfrentá-los. E assim por diante.

E é nesse horizonte que quero vislumbrar a minha vida, uma vida em que a ansiedade não me roube o foco e a já tão conhecida indecisão não tire de mim o sabor de lutar por meus sonhos.