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sábado, 29 de setembro de 2018

No meio do caminho tinha uma Mirela

Tinha uma Mirela no meio do caminho.

Tudo começou como o começo muitas vezes pode ser: inseguro, indistinto, incerto, infinito em suas possibilidades. Então vieram as pequenas explosões, os desconfortos compartilhados, o momento em que as rachaduras começaram a se criar. O que se fazer quando não se sabe o que fazer nesses momentos? O que dizer quando não se sabe ainda que palavras existem para conduzir um rio de águas correntes para uma direção distinta? Isso sequer é possível?

Então as pequenas explosões se acumularam. Cresceram de dentro para fora com as experiências vividas, com os não ditos acumulados, com os tantos braços que o rio abriu com sua força inexorável de imprevisibilidade. Até um grande bum! E estava feito. Rompeu-se, quebrou-se e já não se havia mais vontade de remendar.

E tinha uma Mirela no meio no caminho.

O rio correu para o mar. As águas do tempo passaram, trazendo com elas todos os tipos de oportunidades, de novidades, de dores e novas dificuldades. As cicatrizes permaneciam ali, para sempre cutucadas, para sempre incapazes de serem totalmente curadas. E, em meio aos puxões de duas forças contrárias, um coração se permitiu ser dilacerado centenas de vezes.

E ali, bem no meio dele, tinha uma Mirela.

Nada é mais importante do que essa Mirela. Então por que ela fez os outro acreditarem que poderiam sê-lo?

Nada é mais forte do que essa Mirela. Então por que ela abaixou a sua cabeça, ofereceu o lombo e carregou os pedregulhos da explosão como se lhe pertencessem?

Nada é maior do que essa Mirela. Então por que ela se faz tão e tão pequena?

Não puxei o gatilho. Não dei o primeiro passo. Não construí relações que não são minhas. Não invadi a mente das pessoas e as convenci a serem o que são e a escolherem o que escolhem. Então por que estou pagando por isso se a culpa não me pertence?

É porque me fazem passar por isso? Ou é porque eu mesma que escolhi? Como se escolhe não viver e reviver esse mesmo papel?

Tudo que queria era ter paz. Um relacionamento em paz. Uma amizade em paz. Sonhar com essa possibilidade me alimentou a alma por anos. E todas as tentativas me levaram à frustração de ser incapaz de controlar as águas, as explosões e o curso das coisas.

No meio do caminho tem uma Mirela e às vezes parece que ninguém liga para isso. "Nossos medos, nossas dúvidas e nossos orgulhos são deveras importantes. Que ela permaneça onde está, onde escolheu estar".

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Através do sofrimento pude olhar para dentro de mim mesma num nível muito profundo, bem naquela parte aonde habitam a minha vergonha, o meu medo, a minha necessidade de controlar tudo. Estou criada pelo medo, mas sou filha do desejo. Para além de tudo que me deixa sem ação, para além da possibilidade de ser rejeitada, de não ser reconhecida, de não ser boa o suficiente, existe um imenso desejo de ser eu mesma!

Eu simplesmente não sei o que fazer, o que falar, como me mostrar, que outras ferramentas utilizar para passar a minha verdade. Não tenho a prática de traduzi-la para ninguém em momentos de crise, aqueles que exigem mais de nós, que nos desnudam e testam tudo que achamos que conhecemos da vida. Repito hábitos, me prendo a um ciclo de ser culpada o tempo todo, como se a única forma de permanecer na vida das pessoas fosse sendo o que elas esperam que eu seja, mesmo que com alguma folga para ser um pouco de quem eu sou.

Onde está minha coragem? Só surge quando há sabedoria? Só vem à tona quando eu sei o que fazer?

Estou perdida, mas tenho uma família, amigos e um parceiro que me amam. Não sei o que fazer, mas tenho um lar, um emprego, meios para me encontrar. Estou sozinha, mas na melhor companhia.

Então preciso aceitar esse momento como ele é. Preciso aceitar meu coração como ele está. Preciso me ver, me sentir, me enxergar. Sozinha, sem o aval de ninguém. Sozinha, eu mesma, Mirela.

Estou cansada de ouvir conselhos. Estou cansada de abaixar a cabeça para tudo que querem me dizer, para toda a cobrança que estou acostumada a receber, a tudo que eu crio em mim mesma e projeto para receber como eco dos outros. Estou cansada de ser a vítima subserviente, a heroína que se sacrifica, aquela que sente que não pode fazer escolhas por conta própria.

Tem um caminho, mas nele não tem uma Mirela.

Porque ele é ela. E Mirela é o caminho.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Ele ou Ela?

Hoje comecei o meu dia como o de costume: acordar cedo, me preparar para sair e ir trabalhar, enfrentar o imenso desconforto que é estar na presença de outros seres humanos enquanto utilizo o metrô ou caminho na rua. Tudo estava bem normal mesmo. Mas hoje foi um dia em que acordei com uma sombra negra pairando sobre mim. Não porque algum acontecimento do dia anterior tivesse provocado isso ou algo assim. Era apenas... um dia ruim. Um dia sem confiança própria. Dos mesmos medos, das mesmas dúvidas, das mesmas angústias. Da mesma raiva de saber que continuo podendo sentir essas coisas, que não as superei completamente.

Mas esse novo desabafo não é para contar sobre o meu dia. Porque ele foi o início, mas transcorreu sem nenhum problema particularmente importante e eu ainda consegui me sentir bem ao longo dele. Só que, no caminho de casa, me vieram pensamentos íntimos e dos quais eu sempre tive muita vergonha de falar a respeito com qualquer um. E, com eles, questionamentos, possíveis respostas e mais perguntas.

Desde criança eu soube que não era e nem queria ser como os outros meninos. E eu nem queria ser menino. Pra quê? Homens, com sua força, sua liberdade, suas atitudes quase que automaticamente justificadas por serem o que são. Homens, destinados à liderança da família, a serem capazes de puxar brigas para defender a própria honra, a falar grosso e se impor. Homens, sentando de pernas abertas, tirando suas camisas, exercendo todo o seu direito à masculinidade inerente. Tudo isso sempre me foi absurdamente estranho, quase como se eu fosse um extraterrestre. Porque, obviamente, eu também não era mulher.

Fui criado em um ambiente e em uma época em que o pensamento "binário" imperava com uma firmeza muito maior. Havia: bem e mal; branco e preto; certo e errado; homem e mulher. Eu não fui ensinado a realmente questionar as áreas "cinzas" desses extremos, a ver que uma coisa tinha muito da outra dentro de si e isso era apenas natural. Então esse pensamento dualista se enraizou dentro de mim profundamente e gera frutos até hoje.

Daí me veio o primeiro choque: nasci homem, mas não queria ser homem. Queria ter nascido mulher. Porém não havia nascido mulher, então para mim não seria possível ter o carinho e o cuidado que as mulheres ao meu redor pareciam receber. Não teria a vantagem de fazer parte do grupo das meninas populares da escola junto com minhas primas, trocar segredos, estudar juntas, conquistar os garotos. Não poderia ser parte desse universo, dessa realidade. E jamais encontraria o amor, porque eu ainda não sabia que dois homens também podem ter um relacionamento. Era como viver mergulhado num misto constante de humilhação, inveja e frustração. Por não ser nem como elas e nem querer ser como eles. Por me sentir não sendo ninguém exatamente, apenas um engano, um erro. E por nem sequer imaginar que haveria uma forma de poder ser "eu".

É claro que eu estava completamente alienado em relação às dificuldades e imensas injustiças com as quais as mulheres em geral precisam lidar ao longo da vida, dado o nosso histórico patriarcal e criminoso com elas. E, ainda assim, hoje fui tomado por esse sentimento novamente: queria ter nascido mulher. "Por que?", me pergunto eu. Por que ser mulher?

Seria uma fuga? O que seria, de fato, melhor?

Sempre admirei e invejei as mulheres. Sempre gostei e acho que gostarei das personagens femininas, sejam de jogos, filmes, livros, não importa. Busquei me aproximar e me identificar com elas antes de qualquer coisa. Porque elas eram tão legais! Corajosas, lutadoras, heroínas, independentes e, ainda assim, mulheres. E tinham também a atenção e o desejo dos homens. Eram a epítome da perfeição na minha visão infantil. Então era mais ou menos assim que eu via o fato de ser "mulher". Toda mulher sempre foi superior a mim por ter nascido da forma correta e, assim, poder exercer essa existência com suas particularidades de gênero.

Ser homem... sempre me meu muito medo. Porque eu via os homens ao meu redor sendo ensinados a se comportar como homens: com sua brutalidade, virilidade, evitando a delicadeza. "Não sente desse jeito, não faça isso, não é coisa de homem". Perdi a conta da quantidade de coisas que ouvi durante toda a minha vida e que secretamente alimentaram uma sensação de contínua inadequação dentro de mim. Nunca quis me portar estritamente como o padrão masculino manda, não me dava prazer algum. Quis me distanciar disso o quanto pude e com toda a pouca coragem que conseguia reunir. Sempre fui feminino, minha voz não engrossou tanto como as dos rapazes normalmente engrossam, passei uma imensa parcela da vida me recusando terminantemente a ficar sem camisa e mais uma série de outros comportamentos peculiares. Sentar de pernas abertas? Não, não mesmo.

E, como que por uma ironia da vida, minha barba não demorou a crescer. E depois veio uma verdadeira enxurrada de pelos por todo o corpo. E aí cresci, cresci muito e fiquei com pés enormes. A testosterona parecia trabalhar a todo vapor, independente da minha vontade. Cada uma dessas coisas era um motivo de vergonha para mim. Era como me afastar mais e mais do meu ideal, das minhas heroínas, da menina que vivia dentro de mim. Da minha própria alma.

Acho que é aí que entra o papel da dicotomia na minha criação: como não tinha ouvido algo como "está tudo bem em você ser como é, você tem o direito de ser feliz e de realizar os seus sonhos, inclusive o de amar e ser amado", creio que posso ter assumido dentro de mim a identidade de gênero que se encaixava com o meu desejo por pessoas do mesmo sexo, quase como sendo uma forma de compensação. Me via como menina. Em silêncio, em segredo, minha maior vergonha e meu maior tesouro. Olhava para os meninos e tinha muito prazer em reconhecer as diferenças entre nós, isso me deixava intimamente seguro e reafirmado de certa forma, mesmo com todo sofrimento e bullying que isso me gerou ao longo da vida.

Mas é como levar uma vida inteira na periferia de si mesmo, incapaz de se voltar para dentro e descobrir o que te faz forte, o que dá medo, o que se quer fazer da vida. É como estar sempre no limiar entre o "quero que as pessoas saibam e me respeitem como sou" e o "ninguém jamais pode saber disso, porque é errado". É estar paralisado e deixar a vida correr ao seu redor, como uma pedra que não se move com o correr das águas.

Hoje, tenho um relacionamento com um homem e não precisei mudar de sexo para isso. Um homem que conhece esse segredo e me amou ainda assim. Hoje aprendi a ler melhor as "áreas cinzas". E descobri que, se ainda quero ser mulher, é porque já sou uma mulher. Sou uma mulher dentro do corpo de um homem, com todos os seus traços característicos. Meu sexo físico muitas vezes pesa sobre mim como uma pedra, por vir imbuído de toda uma carga do que é esperado socialmente que eu faça - ter mais força, carregar mais pesos, passar mais segurança às pessoas, etc. Quando, na verdade, eu só quero fluir. Quero ser eu e me orgulhar disso.

Queria poder gritar essa verdade para os quatro ventos. Queria que as pessoas enxergassem essa minha realidade e a respeitassem para que eu me sentisse seguro para ser quem eu sou. E queria não sentir que preciso do aval de outras pessoas para exercer minha existência, mesmo as desconhecidas. Queria não ficar analisando doentiamente todo e qualquer outro ser humano para saber o quão diferentes somos em questões de gênero. Queria me sentir tão confortável quanto um homem ou uma mulher que cabem dentro da própria pele e não precisam passar por esses questionamentos. Uma pessoa CIS.

Porque não sou CIS. Não sou uma metade da laranja, nem descendente de Adão. Sou uma mistura, numa loucura de gritos e cores sem fim.

Sou mulher, mesmo sendo homem. Prefiro ser mulher, mas hoje aceito ser homem. Sou tanto ele quanto ela. E onde eu puder exercer essa minha existência em completude, assim o farei.

Que eu tenha coragem.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

A ilha

Não saberia dizer o que fiz de minha vida. Esse ano completarei 26 anos. Fiz faculdade, trabalhei em dois lugares diferentes, tive minha parcela de amores e desamores, mesmo que muito breves. Mas me sinto fincado num buraco, incapaz de ir adiante. Odeio meu trabalho, odeio o pouco dinheiro que ele me paga, odeio querer fazer tantas coisas e não saber por onde começar. Queria tanto, mas tanto mudar a minha vida e começar a lutar para ser feliz, só que parece que desaprendi a fazer isso. Me vejo caindo cada vez mais rápido naquela vidinha adulta que eu sempre temia: um emprego meia-boca, que me rouba muitas horas por dia, para chegar em casa e não me sentir apto a fazer mais nada de produtivo. Cresci. Sou um adulto agora. Vivo como um adulto, pago contas como um adulto. Tenho dívidas crescentes como um adulto. Um adulto incompleto, perdido e bastante infeliz.

Talvez seria melhor se eu fosse uma pessoa que não ligasse pra isso, que não se desse ao trabalho de gerar esse tipo de raciocínio, porque aí aceitaria tudo que me acontece e pronto, poderia até ser feliz. Eu... sei, ou ao menos tento saber, da minha responsabilidade pela situação atual de minha vida. Querer ir adiante é diferente de agir pra ir adiante, e não ando agindo muito. Os dias passam, viram meses, que já viraram mais dois anos de pura insatisfação. Como eu não soube aproveitar bem a minha faculdade e grande parte das oportunidades que me apareceram, me vejo agora irremediavelmente perdido diante de um mundo que só quer saber de me devorar. E eu, que sempre fui aquela criança assustada, escondida no meu canto, com medo de ser colocada à prova algum dia... Me sinto plenamente despreparado para sequer abrir a minha boca e dizer "tenho um sonho para realizar".

Sinto tanta dor ao me sentar na cadeira do trabalho, tanta dor ao me forçar a sorrir e a servir essas pessoas a quem pouco consigo respeitar. O ódio cresce dentro de mim, parece que estou afundando dentro dele. Mas nada muda. Houve uma época em minha vida em que as decisões importantes foram tomadas pelo destino e eu apenas era carregado pela correnteza. Hoje essa correnteza me empurra em direção a uma queda mortal e só me resta me proteger em uma "ilha segura" ou nadar para chegar mais longe.

Parece que a vida adulta é exatamente isso: um rio de águas violentas e cruéis. E nossos empregos ou as formas que encontramos de nos sustentar são essas ilhas, espalhadas no caminho. Uns conseguem construir embarcações, através das experiências e de seus investimentos, e passam a desafiar as águas muito mais bravamente. Outros, como eu, desaprendem a nadar e ficam numa mesma ilha, deprimidos e sonhando com espaços maiores e melhores, onde poderiam ser felizes. Minha confiança, meu crescimento, minha aparente inteligência: de nada isso vale frente à correnteza. Porque não sei fazer valer, não sei viver essa vida e reluto muito em aprender.

Fico parado, engasgado, travado no tempo enquanto o resto do mundo gira em sua indiferença à minha dor. Queria chorar, mas não consigo. E os entretenimentos que encontro me servem de analgésicos, os quais me impedem de me tornar uma pessoa totalmente amarga e cruel.

Queria que minha vida mudasse... Queria que alguém pudesse fazer isso por mim. Queria achar uma fórmula mágica para isso. E queria não ter que passar por essas coisas. Mas queria, também, ser mais forte, para justamente passar por essas coisas e sair vitorioso. Queria mudar a minha vida eu mesmo, me sentir orgulhoso de minhas conquistas, de meus pertences, do que eu posso fazer. Queria... Estar satisfeito.

No escritório, o pequeno rádio ligado corta o silêncio com suas canções que nada me dizem. A mesma sinfonia de teclas e telefonemas faz sua performance, enquanto os funcionários realizam suas coreografias ao som dessa música bizarra.

E eu, com os olhos fechados, rezo para que mais um dia nessa ilha acabe logo.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Um céu não tão egoísta

As nuvens estão passando, posso vê-las se perdendo além do limite do horizonte. Hoje há bastante azul naquele céu cinzento, que insistia em lançar pesadas tempestades sobre minha cabeça, muitas vezes me fazendo esquecer da existência da luz, do sol.

É bom poder reler coisas que escrevi e sentir que são passado. Como era uma pessoa diferente, com uma compreensão totalmente diferente da realidade e de minha participação nela.

Acredito que o caminho que escolhi não deve ter fim: mergulho cada vez mais fundo dentro de minha própria consciência, buscando localizar e compreender as razões de meus medos. Mas talvez tenha aprendido uma das lições mais valiosas na vida: não há de se combater coisas ruins com outras coisas ruins, ou elas apenas irão se proliferar em maior número como resultado final. Pelo contrário, aprendi a tentar compreender, aceitar e até gostar, em alguns casos.

Ao céu cabe carregar as nuvens e ao vento soprá-las para onde lhe convir. Eu, mortal e cheio de dúvidas, assisto e realizo o espetáculo de viver, para que a chuva ou o sol me completem um após o outro. Até o dia em que eu também vire vapor, vire uma nuvem, viaje pelo mundo e venha a chover em algum outro lugar.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

A Encruzilhada - "Dois, três, cinco, seis"

Estava numa encruzilhada. Passara por caudalosos rios de lava, poços venenosos e por sombras de memórias assombrosas que havia ignorado por toda a sua vida para chegar justamente àquele local, onde o caminho parecia finalmente começar. Viam-se placas espalhadas para todos os lados, cada uma apontando numa direção aleatória, com palavras pouco esclarecedoras sobre o que viria depois delas além do próprio futuro. E era para o futuro que ele acabaria seguindo, de um jeito ou de outro.

O sol faiscava lá no alto num céu de nuvens finas e transparentes, num dia quente, mas não daqueles que nos fazem ficar muito suados ou incomodados. Era um calor constante, que o fazia lembrar da realidade de sua existência, por vezes tão efêmera, mas não o levava a procurar por uma sombra para se proteger. Não naquele momento, ao menos, em que os caminhos se abriam e se costuravam feito malhas trançadas em frente ao seus olhos, descrevendo curvas complexas uns sobre os outros, meio que para dizer que mesmo sendo diferentes poderiam acabar levando a destinos similares.

E lá estava ele, tendo de tomar uma decisão. Nunca fora realmente bom nisso, talvez pelo seu signo astral, talvez por sua natureza própria. Costumava se deixar levar pelo mundo e fazê-lo decidir em seu lugar, quando já não havia mais jeito. Perdera a conta das vezes em que só entrara em ação quando não tinha mais tempo, quando não podia parar para pensar e escolher com cuidado. Porque escolher significava, ao mesmo tempo, aceitar uma coisa e negar outra. É sempre assim, não se pode ter tudo. Mas isso sempre foi algo muito difícil para o menino aceitar.

Era um menino desajeitado, todo torto, todo errado, mas cheio de curiosidade. Tinha um constante ar de mistério, um olhar escorregadio, de quem escondia mais do que falava. Caminhava timidamente, como se duvidasse do direito que possuía de dar cada novo passo - e talvez andasse para trás caso lhe dissessem que não o tinha, que estava errado. Seu medo de errar era seu pior defeito, o fazia querer esticar seu pescoço para alcançar a visão das aves para assistir a vida de cima e estudá-la, porém sem nunca realmente participar dela.

E mesmo sendo esse menino, lá estava ele. Era um momento divino e igualmente aterrador aquele, o de tomar a decisão e arcar com as consequências dela. Como medida de segurança, tentara enviar cartas para alguns dos caminhos, aguardando respostas que lhe esclareceriam mais sobre o que deveria fazer. Mesmo que fosse apenas um subterfúgio para adiar a sua responsabilidade sobre si mesmo, ele não se importava. Estava sendo como poderia ser, fazendo o que poderia fazer, tudo em seu próprio tempo, contrariando o tempo do mundo.

E aguardava as respostas... Umas vieram, outras demoraram. E ele ainda esperava. Talvez tivesse muito mais medo do "sim" do que do "não" - o segundo encerrava o assunto e lhe libertava, ainda que tristemente, mas o primeiro era uma promessa de futuro incerto e cheio de armadilhas para suas fraquezas. Só que, novamente, não podia mais estar no controle, com a cabeça lá no alto. Precisava e gostaria de errar.

Mas até quando poderia esperar? Até quando merecia adiar a sua escolha? Mesmo que ninguém lhe respondesse, ele sabia a resposta dentro de si. O momento estava chegando, não por uma força da natureza que vinha de fora como já lhe acontecera, mas como uma força emocional que brotava de sua vontade. Não é que não pudesse mais esperar, é que ele já não queria mais tanto assim. A carta não vinha, talvez nunca viesse, mesmo que a tivesse enviado corajosamente. Não estava em seu poder fazê-la ser respondida. Outros caminhos, igualmente incertos e especiais se estendiam adiante, ele sabia disso, e tudo que queria era poder seguir por um deles sem sentir culpa por ter deixado o outro para trás.

Talvez o tempo não fosse aquele, talvez adiante achasse um atalho que o levasse de volta para aquele caminho sem resposta. Mas ele não podia viver contando com isso, não mais. Não para viver pela metade, pois é muito mais difícil trilhar uma estrada quando se anda sobre um pé só. Respirou fundo e decidiu arriscar: deu o primeiro passo. As placas tremeram com o vento, como se ele cantasse ao soprar por entre suas superfícies metálicas e brilhantes contra o sol. E de repente o silêncio absoluto, ansioso pelo som do próximo pé sobre o próximo pedaço de chão. E aquela indecisão, e aquela indecisão.

Mais um passo. Dois, três, cinco, seis. O caminho se abria conforme se aproximava, formando uma estrada cada vez mais larga, como que se dilatando para aceitar a responsabilidade de recebê-lo. Os demais, contudo, sumiam de vista, transformando-se em vultos indistintos, nem distantes e nem próximos, mas presentes até aquele momento. Voltar para começar de novo era sempre uma opção, disso o menino sabia. E mesmo que a sua vida dependesse daquela escolha, bem, a sua vida não dependia exatamente daquela escolha, sabem. Ela era muito maior do que aquele simples momento, que o levaria a outras encruzilhadas do destino. Ela era infinita em sua finitude, se estendia para além de qualquer estrada ou horizonte.

E foi pensando nisso que ele decidiu ir em frente, sorrindo consigo mesmo e só podendo esperar pelo melhor. Queria rir quando quisesse rir ou chorar quando fosse necessário. E sabia que, independente de para onde aquele caminho o levasse, ele finalmente poderia se sentir como não se sentira antes: vivo.

As dúvidas não se calaram, os medos não adormeceram. A dor não cedeu, nem o rancor morreu. Mas tudo era uma música que lhe soava aos ouvidos como uma trilha sonora perfeita de sua história. E a alegria era o sol, brilhando com uma esperança implacável sobre sua cabeça.

Por aquele e por muitos e muitos outros dias...

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Um Lugar Desperdiçado

O veneno que corre em minhas veias a cada dia ameaça parar meu coração. Ele corre e se espalha por entre cada célula, lançando gritos de terror, de paranoia, de incompreensão. Inunda meus olhos, turva minha percepção, me faz querer correr quando mal consigo levantar as pernas. Me faz ver cada um na rua como meu inimigo em potencial, como se estivessem prestes a me fazer algum mal. Como se eu merecesse esse mal, como se eu devesse esperar por ele o tempo inteiro e estar preparado. Mas por que?

Suas gotas não são negras ou esverdeadas - ele circula na cor do meu sangue, completamente disfarçado. Faz firulas e não pára exatamente em um lugar. Às vezes parece se esconder em minhas mãos, deixando-as trêmulas e desajeitadas; ou em minhas pernas, provocando os tão conhecidos escorregões e pequenos acidentes. E é nesse meio tempo que eu acredito que posso ser uma alma livre, me dedicar a encontrar algo de que gosto e me divertir, sentir o tempo e o vento passarem por mim como se não fossem grande coisa. Mas logo ele sobe direto para a minha cabeça e jorra seus jatos pungentes em meu cérebro, me infectando com as verdades obscuras que carrego desde que me entendo por gente.

Aí me pego querendo saber quem me injetou esse veneno. Foram meus pais? Por seus erros em suas tentativas para criar essa criança estranha, silenciosa, muito auto-crítica e nada auto-confiante? Porque, como vejo hoje e como os conheço, eles não poderiam ter feito melhor. Não naquela época, não com aquelas cabeças. E, mesmo assim, eles fizeram e fazem sempre o melhor que podem. Então como dizer que o veneno veio deles?

Então, veio das outras pessoas que me cercavam? Não me sentia à vontade ou seguro em lugar algum, jamais poderia abaixar minha guarda para deixar ninguém, ninguém se aproximar. Como se pudessem descobrir o motivo pelo qual eu não deveria existir nesse mundo e mandassem me apagar por completo. Como se eu já soubesse em meu interior que não deveria estar entre essas pessoas, causando-lhes pequenos problemas, lançando gritos sufocados de socorro que quase nunca eram ouvidos e assumiam a forma de atitudes estranhas, súbitas e de difícil compreensão.

Quando paro para pensar, vejo duas fortes vontades lutando dentro de mim: a vontade de sumir, de virar vapor, de assumir a forma ideal para uma pessoa que sente que não deveria existir, de deixar esse tal segredo tenebroso - que até eu desconheço - vir a tona e acabar com toda e qualquer relação possivelmente positiva que eu possua; e a vontade de viver, de continuar existindo. Não sei dizer exatamente porque quero continuar existindo, talvez esteja apenas acostumado a existir e não queira abrir mão disso. Mas existir dói demais, cansa demais, não sei se isso é para mim.

Falando assim, poderia soar como se eu tivesse alguma doença sem cura, ou fosse maltratado todos os dias, ou como se minha vida estivesse qualquer coisa próxima às daquelas pessoas que nem sabem se terão o que comer amanhã. Só que mesmo tendo casa, comida, roupas, algum dinheiro, conforto, família  - tudo que deveria fazer uma pessoa se sentir, no mínimo, satisfeita -, me sinto infeliz. E não é culpa de mais ninguém além de mim mesmo. E saber do tamanho ínfimo que tem os meu problemas se for comparar com, sei lá, os sem teto ou os jovens que são forçados a entrar para o tráfico, isso realmente só me deixa pior comigo mesmo. Porque é algo que eu não deveria sentir, que as pessoas que eu conheço não parecem sentir. Mas sinto mesmo assim.

Esse veneno fui eu quem injetou. Comecei desde cedo, me sentindo forçado pelas situações, pelas pessoas, sem nunca decidir tomar um caminho diferente. Fui viciando nele. Me tornei oco, obsoleto, disforme e fraco. Cresci em tamanho e só aumentei a minha superfície, mas guardei bem fundo todas as explosões que aconteciam a todo o momento. Porque eu sempre estive e estou com tanto medo...

E venho resolver isso através de um texto, cuspindo palavras escolhidas com cuidado para que tentem passar o real significado da dor que esse veneno provoca. Talvez esperando por palavras milagrosas, por um apoio sobrenatural de alguém que o drene para fora de mim. Esperando de alguém a responsabilidade que deve ser só minha. Hoje, pela primeira vez, pensei em me machucar de verdade, como se isso fosse resolver alguma coisa, e isso realmente me preocupa. Jamais farei nada contra minha vida, porque nem meus pais e nem meus amigos merecem isso. Mas viver como eu vivo... não sei se é viver de verdade.

Melhor engasgar, contudo, do que jogar veneno contra os outros. Porque, diferente de mim, eles tem uma vida para viver, uma vida preciosa e cheia de problemas diversos, que demandam atenção. Não gosto de ser um buraco negro que suga a luz alheia, especialmente quando sou rodeado por tantos seres luminosos. Gostaria de brilhar um dia também, mas nem dessa luz eu me sinto digno em alguns momentos.

Que coisa maluca, acreditar com tanta veemência que não mereço ser feliz. Quase como saber disso, como se a cada curva da vida essa informação me fosse ensinada e reafirmada. Talvez outra vida em meu lugar se saísse infinitamente melhor e tivesse mais coragem para se entregar aos seus desejos e fazer de sua própria felicidade seu foco central. Mas essa vida não sou eu... Ainda, pelo menos. A negatividade brota de minha alma como ervas daninhas e fungos maliciosos, ansiosos por devorarem uma floresta que teria solo, luz e água para crescer e brilhar ao sol.

É como um lugar desperdiçado.

domingo, 24 de março de 2013

As palavras querem sair

Elas querem sair. Me sento, me levanto, caminho entre os cômodos da casa. Olho em torno, vejo as paredes brancas, as portas abertas, as janelas da rua. E as palavras querem sair de mim. Como se estivessem engasgadas aqui dentro por tempo demais, como se lutassem por entre minhas cordas vocais, se espremendo para ganharem liberdade, elas sobem como um vomito necessário. Sobem e querem sair de mim, deixar minhas entranhas, deixar minha boca e saltar língua a fora.

Mas não sei dizer que palavras são essas ou se apenas me recuso com veemência a olhá-las. São poderosas, querem ribombar como um trovão, marcar o início do controle próprio das rédeas de minha vida. São palavras de libertação, gritos contra o desespero e contra a angústia, contra o medo em si. Palavras que sequer pretendem formar frases com sentido ou serem compreendidas por quaisquer outras formas de vida. Não, elas querem me acertar com seus punhos verbais, enfiando em mim o bom senso de que tanto preciso para lidar com os meus problemas mais recorrentes. Elas querem derrubar meus óculos e me fazerem ver o mundo como ele é pela primeira vez. Querem romper as paredes, fazer ruir todo o meu castelo e me colocar em meio à balbúrdia que é viver em um mundo como o nosso.

Porque elas sabem que sou capaz de sobreviver a isso. Elas sabem e querem sair. Não querem sair como palavras, aquelas que irão se propagar pelo ar e sumir em seguida. Elas querem sair e tomar novas formas, modificar o que conheço de mim e das outras pessoas. Querem virar estímulo, ação, atitude. Querem romper todo limite que impus a mim mesmo em todos esses anos de existência.

Engasgo, passo mal, rolo na cama e espero passar. E não passa, a sensação cresce, ao passo em que não sei se posso ou se devo realmente gritar para o mundo o que quero gritar. Penso no tanto que quis fazer e não fiz, ou no tanto que fiz e nunca mostrei a ninguém. Tudo que é meu e que é belo, mas que por ser meu perdeu o valor de beleza para mim. As palavras querem sair. Elas vem saindo, como um parto feito às pressas, como o nascimento de um novo ser que já veio velho ao mundo. Não consigo segurá-las! Mas não é que eu queira mesmo segurá-las - quero vê-las jorrar pelo universo!

A razão não é mais parede forte para deixá-las reprimidas - emoção é tudo que sou, tudo que consigo ser. E deixo jorrar, jorrar, jorrar palavras. Todo meu vocabulário escapando de minha garganta até não haver mais voz no meu corpo. Jorram luz e escuridão, jorra o que é preciso para se viver nessa vida. Me torno um ponto brilhante no mundo, um novo foco atuante, uma nova possibilidade divina. As palavras saíram de mim.

Saíram para anunciar o começo da época da coragem. Saíram para desmascarar o culpado, para afagar o inocente. Saíram para que eu soubesse que, contra todas as possibilidades, ainda estou vivo.

E eu, agora oco e sem mais palavras, me posiciono na largada.

Porque a corrida para minha vida vai começar.